Nelson Mandela (1918-2013)
"Durante a minha vida, me dediquei à luta do povo africano. Lutei
contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Eu defendi o
ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas
vivem juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o
qual espero viver e conseguir realizar. Mas, se preciso for, é um ideal
para o qual estou disposto a morrer."
Nelson Mandela, na abertura de sua declaração de defesa no Julgamento de Rivonia, em Pretória, em 20 de abril de 1964.
Em 12 de fevereiro de 1990, quando Nelson Mandela foi solto,
após 27 anos encarcerado, a África do Sul estava à beira de uma guerra
civil entre brancos e negros. A libertação de Mandela era fruto de
negociações entre o regime segregacionista do Apartheid e a resistência
negra, mantidas em segredo para não estimular ainda mais violência por
parte dos extremistas de ambos os lados. Havia uma imensa desconfiança a
respeito das intenções de Mandela, mas mesmo após séculos de opressão e
de seu sofrimento pessoal, Mandela tomou as decisões que fazem muitos
considerá-lo o maior líder político de todos os tempos. Ao levar a todo o
país uma mensagem em defesa da democracia e da igualdade, o Madiba,
como é conhecido no país, se tornou o artífice da reconciliação entre
brancos e negros sul-africanos, evitando o que poderia ser uma sangrenta
guerra civil. Foi esse homem que a humanidade perdeu decorrente de uma
infecção pulmonar, nesta quinta-feira 5. O anúncio oficial foi feito em
rede nacional pelo presidente da África do Sul, Jacob Zuma.
A morte de Mandela era a má notícia que os sul-africanos esperavam há
anos, desde que a saúde debilitada do ex-presidente começou a
preocupar. A cada internação, o país entrava em apreensão, inúmeros
boatos circulavam, o governo divulgava notas oficiais, até que vinha a
notícia da alta. Desta vez, foi diferente. A morte de Mandela deve jogar
boa parte do país em depressão.
Violência e o fim do Apartheid
O luto não se dá à toa. Após anos lutando contra o regime da
supremacia branca de forma institucional, Mandela ajudou a fundar, em
1961, o Umkhonto weSizwe, braço armado do Congresso Nacional Africano
(CNA). Dois anos depois de entrar na luta armada, Mandela foi preso e
condenado à prisão perpétua no famigerado Julgamento de Rivonia. Ele
deixaria a prisão apenas nos anos 1990, quando se juntaria a algumas
poucas figuras que tentariam colocar fim ao Apartheid.
Como o regime beneficiava diversos grupos, a resistência às mudanças
seria ferrenha. Logo após a soltura de Mandela, uma onda de violência
tomou conta da África do Sul. Chacinas foram cometidas várias vezes por
dia em trens e outros locais públicos. Líderes comunitários e outras
figuras públicas foram executados. Massacres nos guetos negros se
tornaram comuns. A execução do “colar”, por meio da qual um pneu com
gasolina era colocado no pescoço da vítima e incendiado, se tornou a
horrenda face da violência no país. Isso sem contar a repressão violenta
da polícia contra as manifestações de populações negras. Era uma época
que os sul-africanos “morriam como moscas”, nas palavras do arcebispo
anglicano Desmond Tutu, Nobel da Paz.
A violência daquele período era atribuída a uma guerra entre o
Congresso Nacional Africano, grupo liderado por Mandela, que pregava a
igualdade entre brancos e negros, e o Inkatha, movimento nacionalista
zulu, um dos diversos povos sul-africanos. Essa era apenas parte da
explicação. A violência generalizada era uma ação orquestrada pelas
forças de seguranças do regime e pelos extremistas de direita do
Inkatha. Milhares de membros da facção zulu foram treinados em campos
secretos e receberam armas e dinheiro das forças de segurança do regime e
de líderes brancos de extrema-direita. Alguns policiais, brancos e
negros, chegavam a coordenar e participar dos massacres. Quando não
havia gente do Inkatha, mercenários de países como Angola e Namíbia eram
contratados. Em silêncio, para não serem identificados como
estrangeiros pelo sotaque, matavam sul-africanos a esmo.
Para o Inkatha, aquela era uma luta para manter a autonomia da terra
KwaZulu e buscar a independência. Para os extremistas brancos, era uma
estratégia dupla: primeiro manter a argumentação de que os negros eram
incapazes de se autogovernar. Caso isso não desse certo, o CNA, de
Mandela, ao menos ficaria enfraquecido para a eleição presidencial que
se seguiria, a primeira na qual brancos e negros poderiam votar e ser
votados livremente.
A estratégia de desestabilização não deu resultados graças à força de
caráter de inúmeras pessoas, entre elas o então presidente
sul-africano, Frederik Willem de Klerk, e de Mandela. Entre 1990 e 1993,
a África do Sul revogou leis que davam amparo jurídico ao Apartheid,
desmantelou seu arsenal nuclear e convocou eleições livres para 1994. Ao
contrário do que pensavam os extremistas, o CNA não estava enfraquecido
por conta da violência. Nas urnas, o partido obteve uma vitória
massacrante, e Mandela se tornou o primeiro presidente negro na história
do país.
"Nação Arco-Íris"
No poder, Mandela operou um milagre político. O
Madiba fez os sul-africanos acreditarem no seu sonho, o de que a África
do Sul poderia ser mesmo uma “Nação Arco-Íris”, na qual todas as
"cores" poderiam conviver de forma harmônica. Mandela conseguiu
contemplar os anseios das minorias brancas e conter a ânsia por justiça
de líderes negros, muitos dos quais desejavam vingança após décadas de
abusos e arbitrariedade.
A face mais visível do esforço de reconciliação feita por Mandela foi o apoio à seleção de rúgbi da África do Sul, os Springboks,
na Copa do Mundo de 1995. Mandela não permitiu a mudança de nome e
uniforme da equipe e tornou a seleção, símbolo de orgulho dos brancos,
em orgulho nacional. A empreitada teve um fim épico com a improvável
vitória da África do Sul sobre a Nova Zelândia, no hoje mítico Ellis
Park, em Johannesburgo. A história foi registrada de forma magistral no
livro Conquistando o Inimigo, de John Carlin, e no filme Invictus, de Clint Eastwood.
O apoio aos Springboks era parte da estratégia de Mandela de
liderar pelo exemplo. Para o sul-africano comum, branco ou negro, era
inevitável se questionar: como pode um homem que ficou encarcerado por
28 anos deixar a prisão sem qualquer resquício de rancor e adotar um tom
tão reconciliatório? Se Mandela podia, todos podiam.
O milagre da Nação Arco-Íris foi também institucionalizado. Sob
Mandela, a África do Sul passou a ter programas de habitação, educação e
desenvolvimento econômico para a população negra; instalou a Comissão
da Verdade e da Reconciliação, que serviu como catarse coletiva para o
país; e aprovou uma nova Constituição, vista até hoje como ponto central
de estabilidade na África do Sul.
O legado de Mandela
Desde que assumiu a presidência, Mandela
deixou claro que gostaria de ser apenas o responsável pela transição da
África do Sul, e não o guia eterno do país. Ele fez isso pois desejava
uma África do Sul independente, inclusive dele próprio. A África do Sul
que Mandela imaginou, no entanto, não conseguiu completar o sonho do
líder visionário durante sua vida. Contra a vontade de Mandela, e de sua
família, sua imagem é usada persistentemente de forma política, às
vezes por líderes que dilapidam seu legado. Esse processo foi agravado
pelo silêncio ao qual Mandela foi obrigado a se recolher devido ao
agravamento de sua doença.
Nos governos de Thabo Mbeki (1999-2007) e do atual presidente, Jacob
Zuma, ambos do CNA, a África do Sul teve grande crescimento econômico,
mas a desigualdade social é maior que a existente no fim do Apartheid. O
CNA, por sua vez, deixou de ser o partido da liberdade para se tornar
um amontoado de políticos acusados de corrupção e de agir em benefício
próprio. A Liga Jovem do ANC, fundada por Mandela, passou a ser
conhecida pelos atos e palavras de intolerância de seus líderes, um
perigo para uma país onde a violência racial está contida, mas a tensão
entre brancos e negros, não.
Apesar do uso político de sua imagem, Mandela continua sendo o
bastião da democracia na África do Sul. Talvez, o distanciamento entre
seu legado e a condição atual do país tenha servido para, nos últimos
anos, tornar mais agudo o sofrimento da população a cada nova
internação. Hoje, finalmente, chegou o dia de deixar Mandela descansar, e
dos sul-africanos colocarem o país no rumo sem um exemplo vivo para guiá-los.
(http://www.cartacapital.com.br/internacional/nelson-mandela-1918-2013-2660.html/view)