sábado, 15 de março de 2014

Bananas e serpentes




BANANAS PODRES

Como um relógio de ouro o podre 
oculto nas frutas 
sobre o balcão (ainda mel 
dentro da casca 
na carne que se faz água) era 
ainda ouro 
o turvo açúcar 
vindo do chão 
e agora 
ali: bananas negras 
como bolsas moles 
onde pousa uma abelha 
e gira 
e gira ponteiro no universo dourado 
(parte mínima da tarde) 
em abril 
enquanto vivemos 

E detrás da cidade 
(das pessoas na sala 
ou costurando) 
às costas das pessoas 
à frente delas 
à direita ou 
(detrás das palmas dos coqueiros 
alegres 
e do vento) 
feito um cinturão azul 
e ardente 
o mar 
batendo o seu tambor 

que 
da quitanda 
não se escuta 

Que tem a ver o mar 
com estas bananas 
já manchadas de morte? 
que ao nosso 
lado viajam 
para o caos 
e azedando 
e ardendo em água e ácidos 
a caminho da noite 
vertiginosamente devagar? 

Que tem a ver o mar 
com esse marulho 
de águas sujas 
fervendo nas bananas? 
com estas vozes que falam de vizinhos, 
de bundas, de cachaça? 
Que tem a ver o mar com esse barulho? 

Que tem a ver o mar com esse quintal? 
Aqui, de azul, 
apenas há um caco 
de vidro de leite de magnésia 
(osso de anjo) 
que se perderá na terra fofa 
conforme a ação giratória da noite 
e dos perfumes nas folhas 
da hortelã 
Nenhum alarde 
nenhum alarme 
mesmo quando o verão passa gritando 
sobre os nossos telhados 

Pouco tem a ver o mar 
com este banheiro de cimento 
e zinco 
onde o silêncio é água: 
uma esmeralda 
engastada no tanque 
(e que 
solta 
se esvai pelos esgotos 
por baixo da cidade) 
Em tudo aqui há mais passado que futuro 
mais morte do que festa: 
neste 
banheiro 
de água salobra e sombra muito mais que de mar há de floresta 
muito mais que de mar 
há de floresta 
Muito mais que de mar 
neste banheiro 
há de bananas podres na quitanda 

e nem tanto pela água 
em que se puem (onde 
um fogo ao revés 
foge no açúcar) 
do que pelo macio dessa vida 
de fruta 
inserida na vida da família: 
um macio de banho às três da tarde 

Um macio de casa no Nordeste 
com seus quartos e sala 
seu banheiro 
que esta tarde atravessa para sempre 

Um macio de luz ferindo a vida 
no corpo das pessoas 
lá no fundo 
onde bananas podres mar azul 
fome tanque floresta 
são um mesmo estampido 
um mesmo grito 

E as pessoas conversam 
na cozinha 
ou na sala contam casos 
e na fala que falam 
(esse barulho) 
tanto marulha o mar quanto a floresta 
tanto 
fulgura o mel da tarde 
- o podre fogo - 
como fulge 
a esmeralda de água 
que se foi 

Só tem que ver o mar com seu marulho 
com seus martelos brancos 
seu diurno 
relâmpago 
que nos cinge a cintura? 

O mar 
só tem a ver o mar com este banheiro 
com este verde quintal com esta quitanda 
só tem a ver 
o mar 
com esta noturna 
terra de quintal 
onde gravitam perfumes e futuros 
o mar o mar 
com seus pistões azuis com sua festa 
tem a ver tem a ver 
com estas bananas 
onde a tarde apodrece feito uma 
carniça vegetal que atrai abelhas 
varejeiras 
tem a ver com esta gente com estes homens 
que o trazem no corpo e até no nome 
tem a ver com estes cômodos escuros 
com esses móveis queimados de pobreza 
com estas paredes velhas com esta pouca 
vida que na boca 
é riso e na barriga 
é fome 

No fundo da quitanda 
na penumbra 
ferve a chaga da tarde 
e suas moscas; 
em torno dessa chaga está a casa 
e seus fregueses 
o bairro 
as avenidas 
as ruas os quintais outras quitandas 
outras casas com suas cristaleiras 
outras praças ladeiras e mirantes 
donde se vê o mar 
nosso horizonte. 

Ferreira Gullar


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